O evangelho de Judas

Mas ainda que nós ou um anjo vindo dos céus pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado"

Gálatas 1:8 (NVI)

Quando Paulo escrevia às igrejas da Galácia nota-se que ele não elogia e nem dá graças àquelas igrejas locais, revelando com isso a tristeza que sentia pelo fato dos gálatas estarem se distanciando do Evangelho verdadeiro: “Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que vos chamou na graça de Cristo, para outro evangelho; o qual não é outro, senão que há alguns que vos perturbam e querem perverter o evangelho de Cristo” (Gl.1:6-7).

O problema na Galácia era interno, Cristo e Seu Evangelho estavam sendo traídos no seio daquelas igrejas confirmando a incessante atuação satânica sobre a Igreja desde os seus primórdios. Há que se ter, portanto, constante cuidado com os falsos ensinadores, pois, quem tal coisa pratica, Paulo manifesta severa maldição: “que seja anátema” (Gl.1:8-9).

Por sua vez, quando Paulo escrevia aos irmãos em Colossos, sua preocupação era com respeito às heresias que ameaçavam a espiritualidade daquela igreja local, mediante discussões intermináveis promovidas por um grupo de falsos ensinadores legalistas, de origem judaica (Cl.2-11,14,16), e os gnósticos que vinham do misticismo filosófico dos gregos (Cl.2:8,20-22). Quanto a isso, Paulo foi explícito: “Eu lhes digo isso para que ninguém os engane com argumentos que só parecem convincentes” (Cl.2:4-NVI).

Antes de adentrarmos na análise do tema básico desta matéria – O Evangelho de Judas -, convém entendermos, mesmo que superficialmente, o que vem a ser o “gnosticismo”. Sua origem vem do grego “gnosis” (gnose em nosso idioma) que significa “conhecimento ou sabedoria”. Filosoficamente, que Paulo chama de “vãs sutilezas” (Cl.2:8), o “gnosticismo” representa o conhecimento esotérico da divindade que se transmite mediante ritos de iniciação (no grego, esoterikos significa “iniciados”). Particularmente convivi, antes de chegar ao conhecimento da Verdade, com vários desses iniciados quando, em passado remoto, militava nas “irmandades secretas”.

Informações históricas dão conta que a heresia gnóstica grega assediou as igrejas cristãs por cerca de 180 anos, e várias das epístolas pastorais, contidas na Palavra de Deus, foram escritas com o intuito de corrigir o grave equívoco que as igrejas locais estavam incorrendo ao permitirem que aquelas heresias fizessem parte dos ensinos eclesiásticos.

Para os gnósticos havia três grupos de seres humanos: Os “hílicos” (ou terrenos) que só se preocupavam com as coisas materiais, estes seriam a imensa maioria da humanidade e para eles não haveria “salvação”; os “psíquicos” que eram compostos por homens que através da “fé”, não pelo “conhecimento” (gnose), haveriam de alcançar uma “redenção inferior”, uma espécie de “purgatório eterno”; e os “pneumáticos” (espirituais), que seriam os gnósticos, que mediante o “conhecimento” haveriam de alcançar a mais “elevada redenção”. Para eles, somente alguns alcançariam tamanho privilégio. É vastíssima a quantidade de compêndios acerca dos diabólicos ensinamentos gnósticos tendo em vista as muitas variedades de forma e aplicação dessa heresia, que teve influências das especulações místicas dos babilônicos e egípcios, dentre outros, mas estas poucas colocações já são suficientes para termos uma idéia dessa diabólica doutrina.

Ao ensejo, convém lembrar que dentro desse contexto é sabido da forte influência que o “gnosticismo” teve sobre a teoria da predestinação fatalista que permeia alguns grupos evangélicos, onde somente os “eleitos previamente por Deus” alcançariam a Salvação, cuja literatura lamentavelmente transita livremente em nosso meio sem que as pessoas se dêem conta dessa “sutileza”. Com extensa cobertura da imprensa mundial, surge em nossos dias a divulgação de um antigo manuscrito que teria sido escrito há cerca de 1.700 anos, intitulado “O Evangelho de Judas”. A existência desse evangelho fraudulento já era conhecida desde o século II, portanto não é uma descoberta inédita. Ele foi citado por Irineu, que passou grande parte da sua juventude em Esmirna, onde manteve contatos com Policarpo, que teria sido um antigo discípulo do apóstolo João. Irineu foi um incansável combatente contra os sistemas gnósticos da época, deixando um importante testemunho antignóstico em “Adversas Haereses” (Contra a Heresia).

Esse manuscrito, tido como de Judas, apresenta um texto muito vago, sem nenhuma aplicabilidade. Em sua introdução, diz que esse evangelho é "o relato secreto sobre a revelação do que Jesus conversou com Judas Iscariotes". Ele inicia com uma afirmação absolutamente inverídica: “Quando Jesus surgiu na terra, fez grandes milagres e maravilhas para a salvação da humanidade". Em nenhum lugar das Escrituras Sagradas é revelado este absurdo. A Salvação nos foi outorgada através do sacrifício de Jesus Cristo na cruz do Calvário e, por sua vez, os milagres e maravilhas realizados pelo Senhor Jesus foram sinais que demonstravam aos judeus que Ele era o Messias prometido. Em Hebreus lemos que os “sinais, prodígios e vários milagres” foram um testemunho de Deus acerca do Seu Filho (Hb.2:4), porém, quanto à Salvação, Paulo é extremamente claro a esse respeito: “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm.5:8). A nossa salvação não veio por meio de “sinais”, mas mediante a morte vicária do nosso Redentor, Jesus Cristo, o Senhor, na cruel cruz do Calvário.

A sabedoria gnóstica rejeitava a expiação pelo sangue e não via nenhum valor na morte de Cristo. Para os gnósticos a morte redentora de Jesus foi tão somente o sacrifício de um mártir por uma boa causa sem qualquer valor expiatório. Contrastando com essa heresia, Paulo declara que a expiação de Cristo é universal, não meramente terrena: “Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude, por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz” (Cl.1:19,20-NVI). Por definição, como tudo que começa errado está fadado a terminar errado, essa absurda introdução já é suficiente para não se levar a sério o restante desse pergaminho.

Grande parte desse evangelho gnóstico descreve inverossímeis ensinamentos que Jesus teria transmitido a Judas, com uma longa explicação sobre hierarquias angelicais e uma outra versão para a criação que, de tão absurdas, desnecessário é descrevê-las, pois seria perda de tempo. Os anjos (aeons) eram objetos de adoração entre os gnósticos e, entre esses seres angelicais, eles incluíam o Senhor Jesus, pois esta era uma forma diabólica de reduzir a estatura de Cristo. Contra esse falso argumento, basta-nos a supremacia de Cristo descrita por Paulo: “Ele (Jesus) é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criação; pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele tudo subsiste” (Cl.1:13-17). Como seria de esperar, bem a gosto dos místicos, não poderia faltar nesse apócrifo uma tediosa sucessão de números múltiplos de seis: “doze, vinte e quatro, setenta e dois luminares que fazem trezentos e sessenta luminares por sua vez, com trezentos e sessenta firmamentos”, e por aí vai.

O ponto que está trazendo a maior polêmica, com grande estardalhaço nos meios de comunicação, se encontra neste falso diálogo entre Jesus e Judas: “Irás superá-los a todos (demais discípulos), pois irás sacrificar o corpo que me reveste”. A grande farsa que desejaram transmitir é que não teria havido uma traição por parte de Judas, mas uma missão de sacrifício. “Afasta-te dos outros e contar-te-ei os mistérios do reino. Irás alcançá-los, mas sofrerás muito”, lhe teria dito Jesus. A Palavra de Deus é absolutamente clara acerca do relacionamento do Senhor Jesus com Judas: “... angustiou-se Jesus em espírito e afirmou: Em verdade, em verdade vos digo que um dentre vós me trairá ... é aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. E após o bocado imediatamente entrou nele satanás. Então disse Jesus: O que pretendes fazer, faze-o depressa”. O Senhor não disse: “aquilo que combinamos fazer, faze-o depressa”.

Como diz Salomão, "nada há, pois, novo debaixo do sol" (Ec.1:9). Evangelhos fraudulentos sempre surgiram desde os inícios da Igreja, dentre eles citamos: O evangelho segundo os Hebreus (gnóstico); o evangelho de Tiago (narrando a história do nascimento de Maria); o evangelho de Tomé; o evangelho de Pedro (gnóstico); o evangelho de Nicodemos; o evangelho dos Ebionitas ou dos Doze Apóstolos; o evangelho segundo os Egípcios; o evangelho de André; o evangelho de Filipe; o evangelho de Bartolomeu; o evangelho de Barnabé; o evangelho de Judas (gnóstico); o evangelho de Maria Madalena. Além dos "evangelhos" surgiram outras publicações como o drama de Pilatos; a morte e assunção de Maria; a paixão de Jesus; a descida de Jesus aos infernos; a declaração de José de Arimatéia; a história de José, o carpinteiro; atos de Pedro; atos de Paulo; atos de André; atos de João; atos de Tomé; atos de Felipe; atos de Tadeu; epístolas de Barnabé; terceira epístola aos Coríntios; epístola aos Laodicenses; carta dos Apóstolos; correspondência entre Sêneca e São Paulo; apocalipse de Pedro; apocalipse de Paulo, etc.

Sobremodo oportuna, portanto, a exortação de Paulo a Timóteo: "Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o aprendeste ... Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao contrário, cercar-se-ão de mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas. Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério" (2Tm.3-14; 4:3-5).

Em nossos dias há um processo satânico de desconstrução da imagem do Senhor Jesus. Evidencia-se claramente o alerta de Paulo que "nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis" (2Tm.3:1) com o surgimento daqueles que se desviariam da verdade com o intuito de perverter a fé. Homens atrevidos, arrogantes, avarentos, irreverentes que jamais chegarão ao conhecimento da Verdade. Essa estratégia é bastante clara nos dias atuais através da divulgação de livros e filmes vilipendiosos que procuram desmoralizar a pessoa do Senhor Jesus, como "A Última Tentação de Cristo", de Nikos Kazantzakis, e o "Código Da Vinci", de Dan Brown, além de outros que certamente surgirão.

Temos que reagir contra esse estado de coisas. Têm que existir aqueles que manifestem o seu brado de indignação, pois, com muita tristeza, observamos que existem muitos que numa forma interesseira e mercantilista deixam-se envolver com os modismos contemporâneos e transformam o Senhor Jesus numa mercadoria vulgar para seus deleites pessoais, através do enriquecimento a qualquer preço à custa do Evangelho.

Se não bastasse todo esse grande mal, no presente século muitos estão se afastando da sã doutrina, trocando a singeleza e a simplicidade da pessoa maravilhosa do Senhor Jesus pela teologia do triunfalismo, uma doutrina equivocada bem a gosto dos gnósticos, que está a carregar multidões para o engano. Ouçamos a voz do Espírito Santo, através de Paulo, para que haja "o retorno à sensatez, livrando-nos dos laços do diabo para que não sejamos cativos por ele" (2Tm.2:26). Permita Deus que assim seja!

(14/04/2006).

autor: José Carlos Jacintho de Campos.