João, capítulo 9
Os vizinhos do cego que acabava de voltar do tanque de Siloé em Jerusalém, agora podendo ver, e outros que o conheciam como um mendigo que se sentava em público para mendigar, quase não podiam acreditar na sua cura e alguns até duvidaram que fosse a mesma pessoa. Ele os ouviu e confirmou que era, realmente, a mesma pessoa.
Exigiram então que explicasse de que maneira fora curado: era preciso saber como uma coisa tão extraordinária poderia ter acontecido. Ele respondeu limitando-se a citar os fatos, conforme o conhecimento que tinha: “O homem que se chama Jesus fez lodo, untou-me os olhos, e disse-me: Vai a Siloé e lava-te. Fui, pois, lavei-me, e fiquei vendo”. Apenas sabia o nome do homem que o curou, pois deve ter ouvido sobre a Sua presença antes de ser curado. Indagado sobre onde Ele se encontrava, disse que não sabia.
Os vizinhos então o levaram aos fariseus, mestres religiosos profissionais que pensavam saber tudo. Devem ter pensado que este milagre tinha um grande significado religioso - e sem dúvida já teriam pelo menos ouvido falar deste homem notório, Jesus de Nazaré. Era um sábado semanal, um dia de descanso obrigatório. Os fariseus tinham feito uma lista longa do que consideravam que se podia fazer e o que era proibido neste dia, e exigiam que fosse cumprida rigorosamente. Era proibido trabalhar.
Como o que fora cego havia sido trazido aos fariseus, estes agora tinham que dar uma manifestação de sua sabedoria, e se puseram a questioná-lo sobre como fora curado. Ele se limitou aos fatos: “Pôs-me lodo sobre os olhos, lavei-me e vejo”. A sua explicação confirmou, no entendimento dos fariseus, que o Senhor havia com isso transgredido as regras deles sobre o sábado, pois esta cura envolvia “trabalho”.
Alguns deles logo concluíram que “este homem não é de Deus. pois não guarda o sábado” como já antes fora acusado (João 5:10, 16, 18). Fazer barro era trabalho, e a finalidade de restaurar a vista de alguém não justificava os meios. Outros, dotados de algum discernimento, olharam mais longe e ousaram perguntar: “Como pode um homem pecador fazer tais sinais?" (versículo 16) causando dissensão entre eles.
Sabemos que o Senhor poderia ter curado o cego instantaneamente com uma palavra, mas aqui Ele pode ter usado barro para demonstrar que é certo cuidar das necessidades dos outros, mesmo se for preciso trabalhar num dia de descanso.
Como os "doutores" discordavam em sua "diagnose", pediram ao "paciente" que descrevesse qual era a sua própria opinião a respeito d’Ele. Sem qualquer hesitação ele declarou: “É profeta”, mostrando assim que cria que Quem lhe dera a vista tinha sido enviado por Deus e tinha uma mensagem divina. Fez uma dedução inteligente, pois alguns dos profetas do passado também haviam feito prodígios e milagres.
Isto não satisfez o primeiro grupo porque os fatos descritos pelo homem, que tinha sido cego de nascença e recebera a sua visão, estava em conflito com a sua visão teológica sobre Deus e o sábado, logo não podia ser verdade. Se pudessem provar que o homem mentia e não fora realmente curado por Jesus, seriam superadas as objeções do segundo grupo.
Assim, apesar dos testemunhos já recebidos, chamaram os seus pais para ouvir o que eles podiam dizer sobre o assunto: se era realmente seu filho, se havia nascido cego e se assim fosse, como explicar que ele podia ver agora. Os pais confirmaram que era seu filho e nascera cego, mas disseram que não podiam explicar como agora via e que perguntassem a seu filho (por medo de serem expulsos da sinagoga). Com isso, os fariseus ficaram sem qualquer base para a sua descrença sobre a cura.
O Senhor Jesus tinha declarado que Seus discípulos dariam a prova do Seu discipulado mediante a confissão do Nome d’Ele diante dos homens, sendo a negação uma refutação (Mateus 10:32; Lucas 12:8). Sabemos que muitos dos líderes acreditavam secretamente na Sua verdadeira identidade (capítulo 12:42), mas “não O confessaram por causa dos fariseus", pela mesma razão dada aqui para os pais, "porque temiam os judeus, porquanto já tinham estes combinado que se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da sinagoga” (havia três tipos de excomunhão: por trinta dias, por sessenta ou indefinidamente). Não é de admirar que os pais se restringissem o quanto possível. Os fariseus interrogaram novamente o que havia sido cego, na esperança de achar alguma fraqueza ou inconsistência de que pudessem se aproveitar.
A frase “dá glória a Deus" não significa gratidão a Deus (como em Lucas 17:18), mas é uma insistência para que se diga a verdade (Josué 7:19; 1 Samuel 6:5), como se não o tivesse feito antes. Já não podendo negar o fato da cura depois do testemunho dos pais (João 9:19) os fariseus agora tentaram conseguir que o homem negasse que fora Jesus que o havia curado. Pensavam que ele deveria aceitar a sua autoridade eclesiástica quando declaravam que aquele Jesus era um pecador, incapaz de curá-lo. Agiram como todos os perseguidores dos santos têm feito através dos tempos.
O homem que tinha sido cego já ouvira as mesmas perguntas vez após vez, e recusou cair na armadilha. Desviou-se do subterfúgio deles sobre Jesus ser um pecador e se agarrou ao fato inegável que sendo cego, agora via, e não sabia como ou por quê.
Desesperados, os fariseus começaram outro interrogatório, finalmente admitindo que Jesus abrira os seus olhos e demandando que outra vez informasse "como". A paciência do homem estava claramente se acabando e ele perguntou: "Acaso também vós quereis tornar-vos discípulos dele?" Esperava-se uma resposta negativa, mas a ironia foi cortante. Claramente ele sabia que Jesus tinha "discípulos" e que os fariseus também sabiam disso.
Os fariseus o injuriaram (assim pensavam) chamando-o de discípulo de Jesus, e declarando orgulhosamente que eram discípulos de Moisés a quem conheciam, acrescentando desdenhosamente que não sabiam donde “este” era (nem queriam saber, ao que parece!).
O homem com um certo sarcasmo respondeu que era muito surpreendente que não soubessem donde Jesus era, pois lhe havia aberto os olhos, que Deus não ouve os pecadores (Jó 27:9, Salmo 66:18, Isaías 1:15, 59:2 etc.), portanto Ele era temente a Deus e fazia a Sua vontade, que a cura da cegueira congênita nele operada fora inédita desde o princípio do mundo, e que se Ele não fosse de Deus, nada poderia fazer.
Até esse dia esse homem era cego, mas fez uso excelente e lógico das Escrituras diante daqueles doutores. Que exemplo para nós! Ele não só tinha ensinado os rabinos, mas os derrotou totalmente em sua discussão. Humilhados, eles recorreram ao seu último recurso de quem não tem mais argumento a opor: o insulto, dizendo que ele havia nascido todo em pecados (veja versículo 2), implicando que tinha sido atrevido quando se dirigia a eles, e expulsando-o da sua presença (provavelmente não foi uma expulsão formal da sinagoga, pois esta requeria uma reunião formal do sinédrio).
O Senhor Jesus soube do acontecido, procurou o que era cego e se revelou como o “Filho do homem” (o Messias, conforme a profecia de Daniel – 7:13-14). O homem creu imediatamente e O adorou, admitindo assim a Sua divindade.
A palavra “juízo” no início deste artigo é usada no sentido de “peneirar”. Por este milagre, o Senhor estava permitindo ao espiritualmente cego (como também fisicamente) ver. Este homem agora passou a ver física e espiritualmente.
Os fariseus tinham olhos e visão físicos, e pensavam que tinham visão espiritual, mas na realidade eram guias cegos (Mateus 23:13-36) complacentes com sua escuridão: "o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1 Coríntios. 2:14). Mas quem admite a sua própria cegueira espiritual e humildemente vem ao Senhor para obter visão, vai recebê-la. “Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não veem vejam, e os que veem se tornem cegos” (João 9:39).