O que vem a ser legalismo?
A palavra “legalismo” não é encontrada na Bíblia; é um sinônimo de legalidade ou observância da lei. No meio evangélico, entretanto, ela tem assumido o sentido de uma conformidade excessiva à letra dos mandamentos e doutrinas, e é esse o sentido em que vamos usá-la aqui.
Quando Deus preparou para Si o povo de Israel, Ele lhe deu uma lei através de Moisés para que soubesse se conduzir de conformidade com a Sua vontade. Como disse o profeta Isaías, “Foi do agrado do SENHOR, por amor da sua própria justiça, engrandecer a lei e fazê-la gloriosa” (Isaías 42:21).
O Senhor Jesus confirmou que Ele próprio a observava, ao dizer: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mateus 5:17-18). Ele cumpriria toda a lei.
Embora a obediência a todas as cláusulas da lei fosse requerida ao povo israelita, algumas eram mais importantes do que outras, o que se refletia nas sanções previstas para os infratores. O Senhor Jesus, quando perguntado por um escriba qual era o principal de todos os mandamentos, respondeu: “O principal é: Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes” (Marcos 12:29-31).
O Senhor Jesus, no entanto, não se enquadra no termo de legalista. Por exemplo, Ele deu razão a Davi numa ocasião em que este se viu em necessidade e teve fome e entrou na Casa de Deus e comeu os pães da proposição, os quais não lhe era lícito comer, senão aos sacerdotes, e deu também aos que estavam com ele (Marcos 2:25-26). Ele próprio escandalizava os religiosos do Seu tempo, por exemplo, ao curar no sábado, ao ordenar a um paralítico que havia curado que carregasse sua cama num sábado, ao permitir que Seus discípulos comessem sem primeiro lavar as mãos, etc.
Legalistas eram os religiosos, como os fariseus da Sua época, e os antigos contra quem falaram os profetas. Distinguimos as seguintes particularidades que os caracterizavam, chamadas também de farisaísmo, pois os fariseus passaram a tipificar essas características:
1. FORMALISMO: a prática rigorosa de atos e rituais religiosos apenas para obedecer aos costumes e manter a aparência de religiosidade. O SENHOR através do profeta Isaías, disse ao povo: “Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação … não posso suportar iniqüidade associada ao ajuntamento solene... Pelo que, quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas” (Isaías 1:13-17). O povo honrava a Deus com os seus lábios, mas o seu coração estava longe dEle, “o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu” (Isaías. 29:13). Jejuava, inclinando a sua cabeça e estendendo debaixo de si pano de saco e cinza, mas para cuidar dos seus próprios interesses, para contendas e rixas e para ferir com punho iníquo. O jejum que o SENHOR queria era “que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo … repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e, se vires o nu, o cubras, e não te escondas do teu semelhante” (Isaías 58:3-7). “O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Romanos 14:17).
2. BEATICE: viver na escrupulosa obediência de minuciosos preceitos religiosos, negligenciando os fundamentos mais importantes: “ … dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas! Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo! … Limpais o exterior do copo e do prato, mas estes, por dentro, estão cheios de rapina e intemperança!… Limpa primeiro o interior do copo, para que também o seu exterior fique limpo!… Exteriormente pareceis justos aos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade” (Mateus 23:23-28). “ … Quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens… não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos” (Mateus 6:5-7).
3. PRESUNÇÃO: julgar que é dono da verdade, desprezar e condenar todos aqueles que pensam e agem de forma diferente. O SENHOR disse: “estendi as mãos todo dia a um povo rebelde, que anda por caminho que não é bom, seguindo os seus próprios pensamentos; povo que de contínuo me irrita abertamente, … povo que diz: Fica onde estás, não te chegues a mim, porque sou mais santo do que tu. És no meu nariz como fumaça de fogo que arde o dia todo” (Isaías 65:2-5). O apóstolo Pedro disse ao centurião Cornélio “Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se a alguém de outra raça; mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo; por isso, uma vez chamado, vim sem vacilar” (Atos 10:28-29). Em nossos dias somos avisados que, entre outras coisas “os homens serão egoístas, jactanciosos, arrogantes, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, enfatuados, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes” (2 Timóteo 3:2-5).
4. TRADICIONALISMO: seguir e defender crenças e costumes transmitidos por antecessores através do tempo, dando-lhes caráter doutrinário. Isto foi severamente censurado pelo Senhor Jesus, por exemplo: “Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? … invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição. Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mateus 15:3-9). As tradições apostólicas, transcritas no Novo Testamento, fazem parte do fundamento da nossa fé, mas há muitas outras que lhes têm sido acrescentadas aos poucos e consideradas erradamente como normas que devem ser estritamente obedecidas. O apóstolo Paulo preveniu: “… como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos? Guardais dias, e meses, e tempos, e anos” (Gálatas 4:9-10)… “Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando humildade… por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade” (Colossenses 2:18-23)
Os crentes que praticam tais coisas são como os fariseus que “têm zelo por Deus, porém não com entendimento. Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (Romanos 10:2-4). Paulo falava por experiência própria, pois em judaísmo ele se avantajava a muitos da sua idade, sendo extremamente zeloso nas tradições dos seus pais (Gálatas 1:14).
Mas tudo mudou quando Cristo Se revelou a ele, pois, como Paulo disse “Ele é a nossa paz, o qual… aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças” (Efésios 2:14-15) e instruiu: “vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos” (Gálatas 5:13-15).
Na Galácia, Paulo informa que “falsos irmãos se entremeteram com o fim de espreitar a nossa liberdade que temos em Cristo Jesus e reduzir-nos à escravidão; aos quais nem ainda por uma hora nos submetemos, para que a verdade do evangelho permanecesse entre vós” (Gálatas 2:4,5). Ele se referia especialmente a judeus que procuravam submeter os crentes à lei de Moisés, embora reconhecesse que “a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom” (Romanos 7:12).
Devemos nos acautelar contra falsos irmãos que, em nossos dias, procuram submeter as igrejas à estrita obediência a alguma norma por eles prescrita, geralmente de particular elucidação, que não está explicitada na Palavra de Deus, e com isso perturbando a liberdade que temos em Cristo Jesus. Se não têm êxito nessa tentativa, eles arrastam atrás de si discípulos das igrejas locais para formar outras que se tornam antagônicas às primeiras.